Cinema Brasil - Humberto Mauro

Ronaldo Werneck

Depois, no Rio, e pelo resto da vida, o cineasta faria famosa a cidade que transformara num grande estúdio de cinema, a Cataguases-para-sempre-protagonista de seu melhor filme, e que ele projetava mundo afora. Em sua Histoire du Cinéma, o crítico francês Georges Sadoul vai citar Ganga Bruta – longa-metragem realizado por Mauro já no Rio, no início da década de 30 – como um dos trinta melhores filmes do cinema mundial. Glauber Rocha – o grande cineasta do cinema novo, que re/descobrira Mauro nos anos 60 – diria por sua vez: “Em Cataguases – quando o cinema era mudo e o Brasil era ainda mais selvagem – Humberto Mauro realizou um ciclo cinematográfico, revelando a existência de uma das mais sólidas tradições específicas de nossa cultura. (...) Seu mundo é a paisagem mineira, e Mauro seria o único cineasta capaz de filmar Guimarães Rosa e dar no cinema a mesma dimensão do grande romancista”.
Do curta Valadião, o Cratera, realizado em Cataguases, 1925, ao documentário A Velha a Fiar, INCE, Rio, 1964. Do primeiro longa, Na Primavera da Vida – Phebo Sul America Film, Cataguases, 1925 –, ao canto do cisne em grande fôlego, O Canto da Saudade, Estúdios Rancho Alegre, Volta Grande, 1952. A imensa obra de Humberto Mauro está devidamente catalogada nos compêndios de cinema, e não cabe aqui desenrolar essa fita inesgotável composta por mais de 300 filmes, contados os preciosos levantamentos da história e cartografia do Brasil, foco central dos documentários realizados para o INCE (Instituto Nacional de Cinema Educativo). O resto é história, são histoires du cinéma narradas pelo “pai do cinema brasileiro”.
Hospital de Volta Grande. Sábado, 04 de novembro de 1983. Noite. Ao despertar, descobre-se de novo internado. Há uma semana, mas não sabia. A brincadeira do “já morri” não tem mais graça: agora está sozinho. Levanta-se ainda tonto: que ir para casa. É só atravessar a rua: mora ali em frente, na avenida com o seu nome: Cineasta Humberto Mauro. Mas não dá um passo e cai, fulminado na prima/velha da vida – “a morte na velha/e a velha a fiar” no seu canto da saudade. Ator, autor, arauto do cinema brasileiro, ele nascera há 86 anos. Ali mesmo, em plena luz da claridade da Mata Mineira, foco de sua paixão, paisagem enquadrada toda a vida por trás das câmeras. Minas na memória. Exterior. Dia. Para sempre.
Do fundo de Minas, a vida ressurge: viva. Cinemauro, um mundo. Viagem em flashback, toda biografia é um travelling na memória. Ou uma panorâmica, metáfora melhor quando o foco é um cineasta que amava captar a luz de Minas com a câmera em seu tripé – num lento mover em sépia e sobre si mesma: mata, moinho, vaca, cachoeira, claridade. Humberto Mauro é cinema que é cachoeira e movimento. Um universo que extrapola, maior que um século.

O cataguasense Ronaldo Werneck, conterrâneo do "pai" do cinema brasileiro, tornou-se amigo do mestre nos anos 70.